Luz, câmera e resistência nas aldeias de Aracruz


Karaí Djekupé grava seus vídeos no quintal de casa, na aldeia Boa Esperança. Foto: Luã Q.

Em meio às matas remanescentes de Aracruz, norte do Espírito Santo, jovens Tupiniquim e Guarani fazem cinema enquanto reinventam e fortalecem a própria cultura 

Por Luã Quintão

Há 520 anos, o tempo soprava diferente no território hoje compreendido como Brasil. Árvores no lugar de prédios, trilhas ao invés de grandes estradas e o vai e vem de automóveis dava lugar ao barulho misterioso da floresta. Ao longo da história muita coisa aconteceu. Povos foram colonizados; paisagens e costumes passaram por diversas transformações, até chegarmos, então, ao século 21: uma era marcada pela ascensão de uma revolução digital que começa a provocar grandes mudanças no comportamento humano, principalmente na forma de estar no mundo e se expressar.

Em um pedaço de mata que sobreviveu ao processo de globalização, no município de Aracruz, ao norte do Espírito Santo, dois jovens indígenas reinventam e fortalecem a cultura ancestral utilizando a tecnologia como aliada. O “olhar de índio” passou a se transmutar entre câmeras, sons e imagens digitais e o espaço virtual a fazer parte da realidade dos povos da floresta.

“Antes era em volta da fogueira e hoje a gente pode fazer algo muito melhor, que é encenar histórias”, relata o cineasta Tupiniquim, T-Kauê, nativo da aldeia Comboios, e que acaba de estrear o seu segundo longa metragem.

“O cinema é uma forma
moderna 
de contar histórias”
T-Kauê

Não muito longe dali também encontramos Karaí Djekupé, um jovem Guarani que está movimentando a aldeia Boa Esperança com suas produções audiovisuais. São vídeos que retratam um pouco do jeito de ser e viver do seu povo e, por detrás das imagens, a intenção de reviver o espírito ancestral indígena. “Vejo o audiovisual como um modo da gente se reunir de novo, de reacender nossa cultura e dizer que nós existimos”, disse.

Apesar de aldeias e etnias diferentes, T-Kauê e Karaí utilizam o cinema como  instrumento de resistência das culturas Tupiniquim Guarani, tendo em vista o passado colonizador e os rumos em que o país tem seguido ao pensar o futuro.

Para os dois, as produções independentes se tornaram um jeito de trabalhar a realidade fazendo com que os próprios sujeitos se reconheçam parte dela. Ao dar voz aos mais velhos, jovens e crianças das aldeias, os dois cineastas provocam interferências na cultura, relembrando tradições antigas e reinventando princípios a partir do contexto de  mundo moderno. T-Kauê, por exemplo, leva para as gravações diversos objetos característicos da cultura Tupiniquim que, devido a todas transformações históricas e principalmente a derrubada da floresta, perderam, inclusive, a funcionalidade tradicional.

Acompanhei T-Kauê em um dia de gravação, na restinga da aldeia Comboios: 

Reparei que um dos meninos estava brincando bastante com o arco e flecha. É como se o momento de gravação fosse um estímulo, digamos... Uma razão para utilizar o arco e flecha, entende?

T-Kauê: Sim… no meu ponto de vista o ato de contar histórias por meio do audiovisual, em princípio, é uma ótima forma de registro de memórias, mas, ao final, acaba surtindo mais efeitos positivos, até mesmo que nem esperávamos. Por isso, eu penso bem nos elementos que vou trazer em minhas histórias, para que o público indígena, especialmente a nova geração, possa ser positivamente influenciado e o trabalho possa vir a resgatar o interesse e o prazer pelas atividades indígenas.

Tenho mais uma pergunta: na sua opinião, como tupiniquim, fazer cinema é uma forma de resistência? E resistir a que?

T-Kauê: Fazer cinema faz parte da nossa luta por resistência. Resistência... resistir a tudo que se opõe ao prevalecimento do povo indígena. Ao sistema que quer nos oprimir e nos extinguir, retirando nossos direitos em todo território brasileiro. O cinema é uma forma de mostrarmos que ainda existimos, que temos um posicionamento e não estamos alheios ao que ocorre no nosso país. Mostrar que também somos seres pensantes, que também somos capazes de coisas grandiosas.

Audiovisual e Mídias Sociais:
uma nova realidade na floresta


Ao contrário da percepção de muitos, a tecnologia tem forte presença nas aldeias do Espírito Santo, principalmente entre as gerações mais novas. Câmeras, celulares, fone de ouvido e a internet já se entrelaçam no cotidiano dos povos da floresta. Atualmente se repara que um número considerável de indígenas está conectado à web, sendo inclusive difícil encontrar alguém que já não tenha uma conta no Facebook, por exemplo.

Esses novos canais de telecomunicação têm sido a aposta dos produtores audiovisuais indígenas, como meio de transmissão de saberes e conteúdos. Karaí Djekupé atua principalmente utilizando Redes Sociais para divulgar seu trabalho. Por meio do projeto Ayu Boatxaa ele grava, edita e divulga vídeos que relatam saberes, músicas e lugares do povo Guarani. 

“Na nossa cultura somos iguais, mas apenas vivendo de forma diferente. Somos todos do planeta terra e para nós, estamos aqui com a missão de espalhar o bem. Por isso me envolvi no audiovisual. Comecei fazendo pequenos vídeos com os familiares da aldeia, depois fui espalhando, e as pessoas incentivaram bastante, até que comecei a me focar, a conhecer pessoas, e a me entregar, principalmente, com temas ligados a cultura, porque com imagens e áudio é um modo muito mais fácil de falar”, explicou Karaí. 

Rompendo fronteiras na transmissão de saberes

Na cultura Guarani a forma ancestral e tradicional de transmitir saberes é através de histórias e principalmente dentro da Opy - uma mistura de casa de reza e escola, onde as pessoas se reúnem toda noite para aprender e agradecer. No entanto, através do projeto Ayu Boatxaa, Karaí Jekupé tem quebrado fronteiras dando voz ao Guarani e disseminando ensinamentos do seu povo por meio de recursos audiovisuais.

“Minha ideia é mostrar o próprio povo da aldeia, e também divulgar para outras populações um pouco da nossa cultura: como a gente trata as crianças, quais são os nossos alimentos, como é nosso dia a dia, nossas crenças, nossas lutas e sonhos”, explica Karaí. 

No Youtube o projeto Ayu Boatxaa já possui 15 vídeos publicados. Rostos e paisagens da aldeia Boa Esperança estão em evidência nas produções que, apesar do aspecto visual singelo, cumpre o papel de transmitir mensagens importantes. Em uma delas o Txamõi Tupã Kwara - um dos mais velhos da aldeia - explica como um jovem Guarani deve se comportar em comunidade até o envelhecer. Já em outra produção, as crianças aparecem de mãos dadas, entoando uma canção que aprenderam dentro da Opy.

Ficção e aventura na aldeia

O cineasta T-Kauê, da aldeia Comboios, em Aracruz, norte do Espírito Santo, acaba de estrear seu novo longa-metragem. O lançamento seria marcado pela exibição do filme na telona, mas, devido às ordens de isolamento social para conter a transmissão do Covid-19, T-Kauê decidiu disponibilizar a obra na internet.


T-Kauê é cineasta Tupiniquim independente, escritor, cantor e desenhista estilo mangá. Nativo da aldeia Comboios, o jovem já participou da gravação do filme “O Enorme Gavião” (2012), baseado numa lenda antiga, e já filmou o primeiro longa-metragem “As Faces do Coração” (2015), exibido na própria aldeia e em escolas indígenas de Aracruz. Atualmente, além de filmar seu segundo longa, T-Kauê também publica vídeos no seu Canal do Youtube TK Produções Comboios, onde ele fala sobre a sua cultura na língua Tupi.


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